The Newsroom 27

6 Setembro 2024

Para reforçar a inclusão da comunidade cigana, um associação fundanense decidiu apostar no culto evangélico

Deparando-se com a falta de interesse da comunidade cigana pelas atividades e pelos cursos de integração profissional que propõe, o projeto Matriz, no Fundão, decidiu agir de forma diferente.

Eva Massy

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Para reforçar a inclusão da comunidade cigana, um associação fundanense decidiu apostar no culto evangélico
Em Portugal, no Tortosendo, a comunidade evangelista reúne-se três vezes por semana e organiza também um culto especialmente dedicado aos jovens. | Eva Massy

Este 25 de abril de 2024, Portugal celebra o cinquentenário da Revolução dos Cravos, movimento militar e popular que pôs fim à mais longa ditadura que a Europa conheceu no século XX. No Fundão, pequena cidade de 50.000 habitantes no centro do país, as comemorações estão ao rubro e os habitantes reuniram-se na praça municipal. Um grupo de jovens sorridentes vai distribuindo cravos ofertos pela associação Matriz, e nas bancas comem-se petiscos e especialidades de várias origens, Afeganistão, Ucrânia, São Tomé e Príncipe, refletindo a pluralidade existente nesta cidade que, em 2023, foi eleita capital europeia da inclusão e da diversidade pela Comissão Europeia.

Mas este ano, uma vaga inquietação paira no ar. As palavras do presidente da câmara Paulo Fernandes soam como um sinal de alarme na sala onde se realizam os discursos comemorativos: “A ironia do destino quis que o ano em que celebramos os 50 anos da nossa democracia fosse também aquele em que foram eleitos 50 deputados de extrema-direita para o Parlamento”.

O partido Chega de André Ventura, criado em 2019, passou de 12 para 50 deputados nas eleições legislativas antecipadas em março do ano passado, convocadas na sequência da demissão do primeiro-ministro socialista António Costa, suspeito de estar envolvido num caso de corrupção.

Umas ruas abaixo, longe das festividades, Marta Afonso, membro da comunidade cigana local, conversa com outras mulheres ciganas, todas vestidas de preto, cor de luto. Manel, 27 anos, o filho mais velho, morreu dois meses atras. A lei cigana impõe um conjunto de regras à família enlutada. Acabaram-se as festas, é proibido ver televisão, ouvir música ou comer carne, obrigação de cobrir a cabeça e vestir-se totalmente de preto, e a lista continua.

Marta, a cunhada e os seus netos, membros da comunidade cigana de Fundão.| Eva Massy

“É eles contra nós”

Para nós, de qualquer forma, o 25 de abril é um dia como os outros”, relativiza Marta. Cinco décadas de democracia não foram suficientes para acabar com a segregação das comunidades ciganas. “É eles contra nós. Nós, os ciganos, somos por vezes demasiado comunitários. E os outros são ainda muitas vezes racistas para connosco”.

Uma discriminação que se faz sentir nomeadamente no mundo do trabalho. Não sabendo ler nem escrever aos 48 anos, Marta pôde contar com a ajuda da Matriz, uma associação local financiada pelo Fundo Social Europeu.

O projeto está na sua 9ª edição e dispõe de um orçamento de 229.779 € até setembro de 2026. Tem como objetivo “promover o diálogo intercultural, a igualdade e a não-discriminação” e intervém junto das populações mais vulneráveis, nomeadamente a comunidade cigana e os migrantes.

Segundo os dados avançados por Elsa Pombo, do Gabinete de Ação Social e Saúde da Câmara do Fundão, dos 500 ciganos que vivem na cidade e arredores, apenas dois têm um contrato de trabalho, incluindo a Marta.

Dois meses depois da morte repentina do filho, Marta decidiu continuar a trabalhar, apesar das regras que o luto impõe. Mas quebrar a lei cigana pode levar, no pior dos casos à exclusão da comunidade, no melhor dos casos aos olhares desaprovadores.

O dilema situou-se entre as críticas dirigidas pelos próprios vizinhos e familiares quando voltou ao trabalho e a necessidade de continuar a alimentar filhos e netos. A decisão não tardou. “Não tive escolha, já perdi um filho, não quero perder outros”, justifica. A voz quebra-se levemente ao evocar os olhares desaprovadores, as palavras duras e a sensação de exclusão, destapando o véu sobre a tristeza que a submerge e que se sobrepõe à perda do filho. 

As palavras reconfortantes dos colegas de trabalho ajudaram, na altura, a “esvaziar a mente”.

Se todos os nossos ciganos pudessem ser como a Marta…”, sorri suspirando Gina, 48 anos, coordenadora da associação Matriz e carinhosamente nomeada Dona Gina pela comunidade. “Na verdade, não temos nenhuma dificuldade em incluir os refugiados afegãos, os guineenses e são-tomenses ou os adolescentes do Fundão, mas a comunidade cigana daqui é complicada”.

Com a morte há alguns anos do patriarca local, a comunidade cigana do Fundão cindiu-se em duas principais famílias, os Sá e os Cardoso, que nunca chegaram a acordo para substituir a figura do líder, elo de ligação com o pessoal da Matriz e da Câmara Municipal para todos os assuntos que envolviam a comunidade. A comunicação foi-se desfazendo. Surgiu então a ideia de nomear a figura de um mediador para (e da) comunidade. Mas a concretização desta ideia não chegou ao seu termo devido à falta de voluntários.

Um jovem de Castelo Branco chegou a preencher o papel, mas não ficou no Fundão mais de dois meses, por motivos não claros, que não excluem a eventualidade de algumas ameaças implícitas que lhe foram dirigidas.

O projeto Matriz beneficia muito às pessoas da nossa etnia”, começa Idalina, na casa dos cinquenta, sentada no sofá com a nora Cristina. “A verdade é que a Dona Gina nos ajudou frequentemente, quando não tínhamos nem televisão nem luz em casa e que as crianças eram acolhidas no Matriz”.

Idalina Sá (à direita) e a nora Cristina, no apartamento recentemente renovado pela câmara, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (co-financiado pela União Europeia). | Eva Massy

Prestável com a Gina que a veio visitar, Idalina oferece-lhe café e um lugar no sofá. As duas noras, Cristina e Gabriela, atualmente no desemprego, já solicitaram a ajuda do pessoal da associação, seja para redigir um currículo, seja para participar numa formação de inserção, etapa necessária para pretender a apoios ou subsídios junto da Segurança Social.

A Cristina trabalhou nas limpezas do Matriz, com contrato de um ano, mas garante (na ausência da Gina) que foi “sem direito a folgas nem a férias”, reconhecendo ainda assim que a passagem pela Matriz lhe foi benéfica. A Gabriela, por sua vez, foi animadora na associação, um papel que encarou “maravilhosamente”, diz a Gina, mas “apenas um vez a cada três dias”, acrescenta, num tom falsamente repreensivo, provocando sorrisos.

Terminado o convívio e antes de voltar às suas ocupações, a Gina pergunta se as três mulheres tencionam assistir, logo à noite, ao culto evangélico pregado nos locais da associação por pastores ciganos de Tortosendo, a aldeia vizinha.

Evocando o luto como obstáculo à participação em eventos e agrupamentos, Idalina, membro da família dos Sá, declina a proposta, que não deixa de enstusiamar a nora, habituada a ir com os pais desde muito jovem. As palavras de Cristina fazem-se sérias : os pastores tornam acessíveis as mensagens da Bíblia para aqueles que não sabem ler, mas sobretudo,  “abrem o caminho para os ciganos, ensinando-os a não roubar e a não se envolverem em coisas ilícitas”.

Uns meses antes, com o apoio da Câmara Municipal do Fundão, membro do consórcio que gere o projeto Matriz, surgiu uma ideia arrojada : porque não transformar as instalações da associação em espaço de culto, uma vez por semana? Gina, coordenadora do projeto, entrou então em contacto com a comunidade cigana de Tortosendo, a 20 km a norte do Fundão, convertida ao evangelismo há cerca de cinquenta anos e onde vivem e pregam vários pastores evangélicos.

Segundo informações recolhidas pela jornalista Ana Cristina Pereira, foi precisamente em Tortosendo que nasceu a primeira Igreja Evangélica Cigana de Portugal. Em 1973, o espanhol Emiliano Jiménez Escudero atravessava a fronteira para evangelizar a comunidade cigana na península ibérica, na continuidade do movimento iniciado pelo francês Clément Le Cossec, fundador da Missão Evangélica dos Ciganos de França – Vida e Luz.

Estima-se que dezenas de milhares de ciganos se converteram ao protestantismo evangélico sob a influência de Le Cossec, considerado como um “apóstolo” pela comunidade cigana de França e da Península Ibérica. Em 2023, a Missão Evangélica Cigana contava 130.000 membros e 222 igrejas em França e faz agora parte da Federação Protestante de França (FPF). Em Portugal, em 2020, existiam 110 igrejas evangélicas e mais de 350 pastores ciganos.

Até então maioritariamente católicos, a comunidade cigana iniciou esta viragem religiosa na década de 1970, seduzidos pela organização mais espontânea e mais livre da fé evangélica. Qualquer patriarca cigano pode pregar a boa palavra. São protagonistas do culto, ao contrário do catolicismo, por outro lado ainda associado ao franquismo em Espanha e ao regime salazarista em Portugal, que perseguia e discriminava fortemente as comunidades ciganas.

Para os pastores de Tortosendo, o próximo passo consistirá em evangelizar “os primos ciganos” do Fundão, explica Bica, filho de Joaquim Vicente, ou “Pastor Quim”, o primeiro cigano convertido em Portugal ao protestantismo evangélico pelo missionário Emiliano Jimenez Escudero, em 1973, após um período sombrio de alcoolismo.

Há cinquenta anos que tentamos abrir portas no Fundão, e graças à Dona Gina e à sua associação, a oportunidade surgiu finalmente. Os nossos primos ciganos do Fundão também precisam de aprender os seus deveres e saber comportar-se na sociedade”, afirma, sentencioso, o pastor Bica.

O impulso dado pela Matriz, projeto sem vocação religiosa e parcialmente financiadao por fundos europeus, a este projeto de evangelização não parece constituir um problema para a Comissão Europeia.

A Comissão tem conhecimento de que alguns dos projetos selecionados e apoiados pelo Fundo Social Europeu (FSE) em Portugal podem desenvolver atividades com caráter religioso ou mesmo ser desenvolvidos por ONG religiosas”, explica uma fonte da instituição em Bruxelas. “O tipo de inclusão social e das organizações da sociedade civil em Portugal permite que até as ONG religiosas que desenvolvem atividades de importância social significativa em Portugal beneficiem de financiamento da UE.”

Os pastores Bica, Acácio e Lotinha, após o culto evangélico do sábado à noite, em Tortosendo. | Eva Massy

Uma garagem tranformada em “casa de Deus”

No sábado, depois de anulada a sessão na Matriz, “devido a um conflito no seio da comunidade cigana do Fundão”, diz-nos o pastor Fernando, o culto organiza-se em Tortosendo, numa garagem transformada em “casa de Deus” e delicadamente insonorizada.

O Pastor Acácio, de pé no palanque e de bíblia na mão, erguida no ar, projeta a voz : “Sejam humildes. Procurem sempre a aprovação do Espírito Santo !”. Da sala, elevam-se frenéticos “Glória a Deus !” e “Aleluia !”, que vão ritmando a oração do pastor. De repente, as luzes apagam-se e começam os cantos de louvor.

Em 1973 é criada a primeira Igreja Evangélica cigana em Portugal, em Tortosendo. Desde então, a comunidade reúne-se várias vezes por semana e organiza também um culto especialmente dedicado aos jovens. | Eva Massy

Socialização à volta do culto

Durante o culto, os pastores transmitem às famílias, aos jovens e às crianças a importância de valores como a educação. Advogam pela importância dos percursos escolares e de não os interromper para, por exemplo, se casarem. Isto, com o objetivo de granjearem mais meios em termos de inserção social e profissional“, analisa a investigadora Maria Manuela Mendes e coordenadora do projeto EduCig – Desempenhos escolares entre os Ciganos.

Num dos seus trabalhos (realizado entre 2018 e 2022), a investigadora mostrou que a maioria das crianças e adolescentes da comunidade cigana que frenquentam a escola nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, assistem de forma assídua ao culto evangélico. Por outro lado, são esses, os jovens ciganos escolarizados, os mais ativos no culto. “Alguns tocam música, outros preparam sala, outros organizam atividades como pequenas representações teatrais e alguns até já pregaram a palavra“.

Ao testemunharem regularmente sobre os seus percursos escolares durante os momentos de socialização à volta do culto, a socióloga apercebeu-se de que estes jovens se tornam exemplos a seguir para aqueles que não se sentem “legítimos, enquanto ciganos, para ir à escola“.

Nestes círculos evangelizados, o comércio ambulante, entre feiras e mercados, aparece como uma possibilidade cada vez menos atrativa para os jovens e pouco rentável para os adultos, nota ainda Maria Manuela Mendes.

Nos melhores dias, conseguimos ganhar até 200€”, expõe o pastor Lotinha, no mercado do Fundão. “Mas depois é preciso descontar o aluguer da banca e os custos da roupa que vendemos”.

A venda ambulante serve à família para “ganhar um dinheiro extra no fim do mês“, para além do trabalho sazonal de colheita, explica Lotinha, brevemente interrompido pelo filho de seis anos, de telemóvel na mão a exibir uma fotografia da noiva, também ela seis anos. O casamento celebrar-se-á daqui cerca de dez anos.

Sentado com o filho à frente da banca no Mercado do Fundão, o pastor Lotinha admite que a atividade “dá cada vez menos lucro”. | Eva Massy

“Subsidiodependência”

Uns metros adiante, Catita e Alexandre Sá, da comunidade cigana do Fundão, vagueam pelo mercado, serra elétrica nas mãos, tentando encontrar quem as compre. “É complicado pedir aos Fundanenses que tenham uma boa imagem da comunidade cigana quando os vêem deambular o dia todo…” alega a vereadora Alcina Cerdeira, responsável pela Ação Social, a Inclusão e a Igualdade.

Quanto mais numa altura de subida da extrema-direita no panorama político nacional, europeu e internacional. A principal crítica que lhes é dirigida, segundo Alcina Cerdeira, cabe numa palavra: subsidiodependentes, neologismo trazido para o debate público por André Ventura, entrou no léxico corrente.

Neste ano em que se celebra o cinquentenário da democracia portuguesa “é mais do que nunca tempo de incluir todas as comunidades”, e Alcina Cerdeira está convencida de que a solução passa por diversificar os tipos de respostas. Nesse âmbito, a Câmara Municipal candidatou-se ao Fundo Europeu do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e distribuirá alojamentos renovados a cerca de 60 famílias em situação de vulnerabilidade, mediante rendas muito abaixo da norma (entre 100€ e 200€, consoante o agregado familiar).

É num desses apartamentos que vive Idalina, com toda a família. A dona de casa garante “que as pessoas já não olham da mesma maneira”, porque antes vivia “com ratos e baratas e as paredes estavam a cair de humidade”.

Lá em cima, na praça municipal, o presidente da câmara Paulo Fernandes, cumprimenta algumas pessoas no fim das festividades que marcaram o cinquentenário da democracia portuguesa.

Quanto à melhor forma de integrar a comunidade cigana, Paulo Fernandes esclarece: “Em vez de integrar, queremos incluir. Respeitando as diferenças culturais. Vamos ver! Agora que temos um culto especialmente dedicado à nossa comunidade cigana. Se os pastores evangélicos podem criar mais tolerância dentro das nossas comunidades, então são bem-vindos”.

União EuropeiaEste artigo foi redigido no âmbito do concurso The Newsroom 27, organizado pela Slate.fr com o apoio financeiro da União Europeia. O artigo reflete o ponto de vista dos autores e a Comissão Europeia não pode ser responsabilizada pelo seu conteúdo ou utilização.