The Newsroom 27

28 Junho 2024

Em Portugal, os reclusos são introduzidos à ópera para prevenir a reincidência criminal

Na prisão juvenil de Leiria, o projeto “Ópera na Prisão” introduz reclusos à arte e música para ajudar a reintegrá-los na sociedade.

Nádia Pedro (Portugal)

Français/English

Em Portugal, os reclusos são introduzidos à ópera para prevenir a reincidência criminal
Performance de reclusos no Pavilhão Mozart do Estabelecimento Prisional de Leiria, Portugal. © Sociedade Artística Musical dos Pousos (SAMP)

A reincidência criminal é um problema persistente em vários países. Em muitos casos, indivíduos que cumprem pena e são libertados acabam por voltar ao sistema prisional. Na Europa a taxa pode variar entre os 21% e 63%. Dependendo do país e método de medição, de acordo com os dados estatísticos do site da World Population Review.

Para enfrentar este problema estrutural, vários estudos têm demonstrado os benefícios da música. Portanto, daí a criação da “Ópera na Prisão”, gerido pela Sociedade Artística Musical dos Pousos (SAMP) na prisão juvenil de Leiria, em Portugal, que acolhe reclusos com idades entre os 16 e os 21 anos. Esta “prisão-escola “, criada com o objetivo de promover a reeducação e a reintegração social dos jovens para evitar que voltem ao sistema prisional, é a única do género no país. 

Apresentar espetáculos de ópera em prisões: a ideia pode parecer original, até utópica. No entanto, o trabalho realizado pela SAMP desde 2004 demonstra que não só é viável, como também é benéfico para os reclusos, que continuam a sentir o impacto muito depois de os aplausos pararem e a cortina fechar.

João (nome fictício), um dos participantes, está no projeto desde 2019. “Já fazia beatbox na rua, mas quando entrei vi que tinha microfones, colunas, e gostei disso”, revela. Ao longo dos anos, participou em diferentes espetáculos, destacando a emoção de ver a própria imagem estampada numa camisola do projeto, o que trouxe orgulho à família e um sentimento de pertença. “É uma boa experiência. Evoluí muito, aprendi muito também.” Descreve como o projeto ajudou a combater a timidez, desenvolver a comunicação e ganhar confiança. “Ajudou-me a dar mais valor a coisas pequenas.”

Pedro e Rui (nomes fictícios) entraram no projeto com diferentes motivações. Pedro usa o tempo na prisão para terminar à distância o curso superior em Música Digital do Instituto Politécnico de Leiria. Entrou no projeto “Ópera na Prisão” como estagiário para ter a experiência profissional necessária para obter o diploma enquanto está preso. Através da ópera desenvolve as competências técnicas. “Ajuda-me a crescer como profissional, como técnico de som, a ganhar competências de comunicação e trabalhar em grupo.” Para Pedro, o projeto também aumentou a autoconfiança. Destaca ainda a transformação da sala de ensaios, o Pavilhão Mozart, num auditório, uma mudança que o fez sentir como se estivesse “numa verdadeira sala de espetáculos”. 

Rui entrou há 1 ano e foi-se “interessando aos poucos”. Deu-lhe a oportunidade de concretizar o “sonho de cantar em palco”. “Cantei com a minha irmã no palco e foi um momento mais emotivo, mais intenso. Senti muita gratidão”. Destaca a importância do projeto para aprender a comunicar, ter autoconfiança e respeito pelas diferentes culturas presentes na prisão. “Ter que aprender a lidar com outras pessoas que não têm a mesma personalidade que nós, isso ajuda-nos muito lá fora”. 

Controlo de impulsos

Entrada do Pavilhão Mozart, edifício da sala de ensaios. © Nádia Pedro

A promoção da educação, a formação profissional e o acesso a oportunidades de emprego são fundamentais para reduzir a reincidência e ajudar na reintegração dos jovens na sociedade. É neste sentido que o projeto usa a ópera como ferramenta de reabilitação. David Ramy, membro da SAMP e coordenador do projeto no terreno, visita a prisão duas vezes por semana, com uma paixão palpável pelo trabalho e sem preconceitos, leva consigo a liberdade de cantar. Trabalha diretamente com os reclusos através da formação musical, mas também “com as famílias deles. Este projeto é 40% cá dentro e 60% na Amadora, em Sintra, que é de onde eles são, a maioria é dos bairros,” explica David. Afirma que a ópera ensina o “controlo de impulsos.” Ao longo de três anos do projeto, os participantes aprendem a cantar, controlar impulsos e pensar antes de agir.

“A figura chave do projeto é a mão do maestro. Um maestro ensina a cantar e a respirar antes da nota. A pensar na nota certa que vais cantar. Não cantas quando queres. Respiras, pensas na nota, e logo emites o som. Isso chama-se controlo de impulsos. Partimos do pressuposto que 95% dos rapazes entre 16 e 23 anos que estão cá dentro não devem ter sabido controlar o impulso. Passam 3 anos a fazer um exercício, de controlo do impulso 2 vezes por semana. Depois numa situação desagradável, antes de cantar a nota, pensam, controlam o impulso”. 

Segundo David, a SAMP tenta fazer a ponte entre os reclusos após a libertação e ofertas de trabalho ligadas à música ou arte. “Começamos por ser a fonte. Vem daqui música, dança, trago-te aqui um cantor, um pintor, um diretor, e num momento passamos a ser ponte. Trabalhamos com muitas orquestras e professores. É uma rede de contactos que os ajuda.” A participação no projeto é voluntária. Joel Henriques, coordenador do ensino e formação dentro da prisão, acompanha o projeto desde 2016, descrevendo-o como “muito enriquecedor tanto para a comunidade prisional como para os jovens que fazem parte do projeto. Começam a perceber que têm alguns ganhos, não só internos, das suas competências, mas também da sociedade que pode vê-los de forma diferente.”

Os ensaios e espetáculos acontecem no Pavilhão Mozart. O edifício da prisão foi reabilitado com fundos da União Europeia/POISE no âmbito do programa Portugal Inovação Social em 2021. A sala de ensaios/espetáculos tem agora um palco, cadeiras, computador e vários instrumentos como bateria, piano e guitarra.

“Este pavilhão estava completamente destruído. E foi construído com esse dinheiro. O projeto sempre agradece o contributo financeiro da comunidade europeia,” mas “quando uma pessoa ou uma coletividade quer que um projeto aconteça, vai acontecer de uma forma ou de outra independentemente dos problemas financeiros.” Segundo o coordenador, o projeto também tem sustentabilidade a longo prazo porque “o que era preciso a nível de materiais e espaço já temos. O resto é o nível humano, somos nós.”

É no Pavilhão Mozart que está agora a construir um novo grupo de Ópera para iniciar a preparação de mais um espetáculo. Ao longo de 3 anos, aprendem técnicas de canto, respiração, teatro e montagem de som e luz. Nos anos anteriores, o projeto já percorreu vários palcos, incluindo o Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. 40 jovens apresentaram uma encenação da ópera “Così fan tutte” de Mozart, diante de uma plateia emocionada e entusiasmada.

Segundo David, a abordagem do projeto é centrada na confiança e na criação de um ambiente de igualdade, onde todos, desde os participantes até aos professores, estão no mesmo nível. O progresso é avaliado pelo desempenho na ópera, mudanças comportamentais e atitudes em relação à música e à vida fora da prisão. Embora não tenha sido possível contactar ex-reclusos que participaram no projeto, David conta como alguns continuam ligados à música e lhe dizem o quão importante foi para se reintegrarem na sociedade. Um desses casos é Diogo, que após a libertação “acabou como um dos chefes técnicos da Fundação Gulbenkian”.

Impacto na Reintegração

Recluso a tocar guitarra durante o intervalo do ensaio no Pavilhão Mozart. © Nádia Pedro

Joel destaca as mudanças que observa nos participantes. Eles aprendem “a trabalhar em equipa, um dos défices que mais apresentam,” e a ganhar “autocontrolo porque têm várias sessões e de respeitar as orientações. Nos espetáculos, transformam-se e parecem muito mais empenhados. Aprendem que são capazes de ter outras ações que não coloquem em perigo os outros. Ganham esta noção de que podem assumir um papel lá fora com confiança, autoestima e respeito pelos outros. São condições que permitem que estes jovens possam ir lá para fora, sem voltar a cometer crimes, e ter relações mais saudáveis com os outros.” Joel acrescenta ainda que “aqui, dentro estão constantemente a ser vigiados e controlados, mas têm este espaço, este projeto, onde podem sentir-se mais livres.”

Para Joel, a experiência artística tem um impacto duradouro na vida dos participantes, que facilita a reintegração na sociedade. “Não acho que isto faça ressonância em todos, mas há alguns que a sementinha ficou lá, das competências, do saber estar, saber ouvir, ter de trabalhar para atingir um objetivo. Sobretudo nos grandes espetáculos, essa experiência vai marcá-los e podem transpô-la para outros aspetos da vida, no campo relacional e no campo do laboral. E sei de alguns casos, que falam comigo quando já estão lá fora, e nota-se que houve crescimento.” Segundo Joel, as competências internas que adquirem são úteis fora da prisão para “saberem comunicar.”

António (nome fictício) também diz que o projeto o ajudou a encontrar uma nova perspetiva na vida. Nos seus dois anos no projeto, teve a oportunidade de participar em espetáculos dentro e fora da prisão, o que lhe permitiu estar com a família. Partilhou a emoção de ter familiares presentes no espetáculo na Fundação Calouste Gulbenkian. “Vi a emoção da minha mãe, do meu irmão. Verem que estou a tentar mudar. Dá para passar uma imagem para a nossa família, para saberem que estamos a mudar, que não continuamos na mesma vida. Sinto-me livre aqui na ópera.” António diz que de tudo o que aprendeu com a música, o que lhe vai ser mais útil fora das grades é “o respeito ao próximo.”

A estigmatização enfrentada pelos ex-reclusos é um fator-chave que contribui para a reincidência entre os jovens. E é aqui que os espetáculos dentro e fora da prisão podem fazer a diferença. Se no início António via o projeto como uma forma de passar o tempo, mais tarde diz ter percebido como ajuda a mudar a forma como se vê a ele próprio e é visto pela sociedade, porque as pessoas assistem ao espetáculo “sem preconceitos” e entendem que “a prisão também tem este lado de ajudar as pessoas, de tentar metê-las no bom caminho. Podem ver a reinserção social aqui dentro.” Segundo David, a música ajuda a “mudar vidas pela positiva. Muda a sociedade que entra nesta prisão.” O coordenador diz que a ópera e os espetáculos ajudam a desconstruir estereótipos e a reconstruir a relação entre os reclusos e as famílias que tinham “perdido a fé.”

Joel também reconhece a importância dos espetáculos na sociedade porque “a receção foi surpreendente. (O público) não estava à espera que estes jovens, que muitas vezes são rotulados com comportamentos desviantes, tivessem estas atuações em palco e fazer aquilo que fizeram.” Também acredita que permite existir uma melhor relação entre os reclusos e “sobretudo os agentes de vigilância que exercem mais controlo sobre eles. Através da música, têm outra perspetiva das coisas, conseguem ver o ponto de vista do outro e serem mais empáticos.” David também notou esta evolução, “a forma como se relacionam com o guarda não é igual. Quando vem aqui na primeira semana e diz ‘ acabou a sessão, todos embora,’ a forma como reagem não é igual ao último ano. Eles respiram, controlam o impulso, brincam, pedem mais um minuto. É completamente diferente.”

Desafios da Ópera

Piano na sala de ensaios do Pavilhão Mozart © Nádia Pedro

No entanto, o “Ópera na Prisão” também tem as suas limitações. Programas de reabilitação insuficiente e falta de apoio na reintegração social são dois fatores da reincidência criminal que nem a música nem o projeto conseguiram superar. Segundo David, a maior limitação é a falta de acompanhamento após a saída da prisão: “Devíamos conseguir ter um projeto que continuasse. Que pudéssemos encaixar na dificuldade da vida. Quando estas pessoas são libertadas, não têm tempo. O tempo que têm é para arranjar trabalho, dinheiro, namorada, casa, carro, para arranjar o futuro. Mas deveríamos ter tempo para eles encontrarem um projeto social supervisionado por nós.”

Outro problema é a falta de acompanhamento por parte da prisão. A prisão juvenil de Leiria é única em Portugal e tem reclusos entre os 16 e os 21 anos. Destaca-se por ser uma “Prisão Escola” criada com o objetivo de reeducar e reabilitar os jovens para que não voltem ao sistema prisional. Joel diz que não há dados sobre a verdadeira taxa de reincidência criminal: “Nós de facto não temos esses dados em termos de rigor, mas tendo em conta a idade deles, se voltarem a cometer algum crime, não vêm para esta prisão porque são considerados adultos. Sei que há reincidentes que não voltam para esta prisão.” No caso daqueles que participaram no projeto e já foram libertados “não houve nenhum que tivesse voltado”. A prisão também perde contacto com os reclusos após a libertação: “Se saírem em liberdade condicional, continuam ligados ao sistema. Contactamos com eles, com a família e com os técnicos que os acompanham lá fora. Se saem em liberdade definitiva só pela vontade deles.”

Joel reconhece que a falta de recursos e limitações internas às vezes impedem a realização das sessões. Outro obstáculo é o tempo limitado disponível para os ensaios, dadas as restrições da vida na prisão. Cada ensaio tem apenas duas horas.

Troca de Soluções

As principais conclusões que David retira é que “há práticas transversais. Ensinar a respirar e a ter autocontrolo. Permeabilidade, multiculturalismo, sempre a partir do trabalho deles e cocriando com eles.”

No entanto, “as prisões precisam de ter mais tempo de abertura para que estes rapazes se formarem. Tem de voltar a ser mais ferramenta de mudança e menos ferramenta de controlo. Temos de arriscar tê-los mais perto das famílias. Temos de controlar que não passem de uma mão para a outra como um objeto. Abrir um leque para os reclusos estarem mais tempo fora das celas em atividades.”

Apesar de não se saber a taxa exata de reincidência criminal, é certo que nenhum dos rapazes libertados, que participaram no projeto, voltaram à prisão juvenil de Leiria. Talvez a ópera não acabe com a reincidência criminal a 100%, mas pode ter uma contribuição.

União EuropeiaEste artigo foi produzido no âmbito do projeto The Newsroom 27, que recebeu apoio financeiro da União Europeia. O artigo reflete o ponto de vista do seu autor e a Comissão Europeia não pode ser responsabilizada pelo seu conteúdo ou utilização.